sábado, outubro 15, 2005

A Senhora e a Sociedade

Estou passando os dias como um zumbi. Os olhos vermelhos e as atitudes retardadas denunciam meu estado de debilidade. Meu chefe e meus colegas de departamento perceberam com pouca dificuldade que havia algo de errado comigo. E de fato há.
Novamente esta noite não dormi bem. Venho tendo desagradáveis pesadelos em que algum membro da sociedade da qual convivi, vi, ou apenas ouvi falar, me espancava enquanto repousava indefeso. Durante a madrugada última, sem conseguir voltar a dormir após o indesejado sonho, prometi a eu mesmo procurar um terapeuta na manhã do dia seguinte, visando resolver o problema.
Quando me deslocava para o consultório me deparei com uma cena mais perturbadora do que a minha famigerada insônia. Uma senhora, bastante marcada pelo tempo, aparentando ter de setenta a oitenta anos, trajada com um vestido de tecido grosso e estampa florida, já bastante mirrado, carregando duas grandes e pesadas trouxas sob passos lentos e tropegantes na calçada desnivelada. O sol da manhã começava a queimar. Adentrei no local de minha consulta e aguardei por uns trinta minutos o atendimento marcado. Durante esta meia hora vi a pobre senhora passar pela frente do consultório, agora seguindo o caminho inverso, ainda com toda a bagagem que carregava anteriormente. Pensei se perdida estaria ela.
No consultório, de frente para o terapeuta, um famoso membro da sociedade “bem sucedida” da cidade, contei a minha situação dando ênfase para os famigerados pesadelos. Venho os enfrentando desde o momento em que perdi o cargo de redator chefe no jornal onde trabalho por denunciar as badernas do filho de um poderoso industrial na cidade. Senti-me bastante injustiçado e na pele como é ser vítima da sociedade hipócrita em que vivemos. O profissional que me escutava atentamente recomendou que eu me acalmasse e procurasse apagar a idéia negativa da sociedade que havia tomado conta de meu consciente. Ao fim da consulta, retirei-me do recinto, não muito satisfeito. Do lado de fora me surpreendi ao ver à senhora que continuava a vagar, agora, nitidamente sem direção. O sol estava em seu auge. Não resisti e procurei me aproximar a fim de perguntar se poderia ser útil. Mais próximo da anciã, pude perceber o quanto cansada e desgastada estava a pobre humana. Já havia caminhado a manhã inteira pela bela avenida em que trafegavam advogados, médicos e engenheiros dentre outros, em seus belos automóveis. Sua situação de penúria não havia comovido nenhum membro da sociedade que ali transitavam!
Talvez pelo cansaço e pelo sol na cabeça que já havia levado, a senhora demonstrava-se um pouco perturbada. Quando lhe indagava o que fazia em baixo daquele sol com aquele peso que carregava, ela respondia com dificuldade que procurava ir para casa. Ofereci-me a levá-la, porém não reconhecia o local que ela me descrevia. Uma pequena casa azul, com uma imagem de santo na frente. Não sabia ela informar nome da rua, o bairro, ou sequer confirmar se era esta mesma a cidade. Pensei em ajudá-la através do jornal em que trabalhava. No entanto, em meio ao meu atual cargo pouco poderia fazer a não ser sugeri-la como pauta para um a reportagem. Telefonei imediatamente para o atual redator chefe que de imediato descartou a possibilidade de tal espaço, pois segundo ele a tal pauta sugerida não se enquadrava no perfil de matérias lidas pelos consumidores do jornal, industriais e executivos.
Desolado restou-me pedir ajuda. Fui com ela até um hotel próximo, onde conversei com o recepcionista, explicando-lhe a situação da criatura necessitada. Nitidamente incomodado ele respondeu-me.
_ Posso tomar conta dela por algumas horas enquanto aparece algum policial estadual ou guarda municipal a fim de encaminhá-la para um órgão competente, porém não posso mantê-la dentro do hotel. O dono se encontra nesta filial e não gostaria de ver esta velha maltrapilha no saguão de seu estabelecimento.
Restou a ela aguardar o apoio na calçada. A mim restou comprar um guarda sol para protegê-la do massacrante ardor dos raios solares. Peguei o telefone da recepção do hotel para me inteirar mais tarde do destino dado a pobre senhora que tentei ajudar.
Sai às pressas, estava atrasado para o expediente vespertino do jornal. Já havia faltado o período matutino para ir ao terapeuta que pouco havia me ajudado. No meio da tarde telefonei para a recepção do hotel na esperança de ouvir boas notícias. Todavia foram angustiantes as palavras do funcionário.
_ Eu tentei entregá-la para dois guardas que caminhavam pelo local fazendo a ronda costumeira. Eles me informaram que a tal senhora é uma moradora de rua, e há anos percorre a avenida principal com suas trouxas a procura da suposta casa azul. Por fim mandaram informá-lo que não era para se preocupar. Depois da falácia, se foram e deixaram a velha trôpega ao relento. Eu por minha vez a tirei da calçada do hotel, pois ela estava constrangendo os nobres clientes de nossos serviços.
Aquele parecia não ser o meu dia. Quase não rendi no trabalho e levei uma advertência do superior. Ao final fatigante do expediente voltei para casa sem a alegria de quem retorna ao lar para descansar. Sabia que teria pela frente mais uma longa noite e madrugada de pesadelos e insônia. Tentei assistir o ultimo repórter da televisão, onde foram noticiados as frases com alto teor critico do senhor presidente aos grevistas. Como resultado do cansaço acabei adormecendo. Alguns minutos depois teve início o esperado pesadelo diário. Desta vez, porém, podia observar particularidades. Quem espancava eram as habituais figuras da sociedade a qual eu havia convivido ou visto durante o dia. No entanto desta vez a vitima não era a de sempre, eu, e sim a senhora que tentei ajudar pela manhã. A tragédia do sonho acontecia no mais importante cruzamento da avenida principal. Os guardas com suas armas em punho começavam o espancamento. Completamente indefesa a senhora não oferecia nenhuma resistência e caída recebia os sopapos. Em seguida vieram o terapeuta, meu chefe e os colegas que trabalham comigo no jornal. Cada qual com um grande porrete, estavam o industrial e seu filho marginal. Advogados, médicos, engenheiros e executivos contribuíam com a barbárie pisando e chutando a cabeça da senhora, que a esta altura já se encontrava totalmente desfigurada. Não parava de chegar gente de todas as profissões, famosas e anônimas, professores e alunos, mestres e discípulos. O dono, o recepcionista e os clientes do hotel se amontoavam para ao menos chutarem as pernas da quase defunta. Assustei-me quando identifiquei em meio à multidão o presidente, ladeado pelo repórter da televisão, ambos atirando pedras na pobre vitima. Ao contrario dos pesadelos anteriores em que acordava antes de meu falecimento, neste a velha foi totalmente dilacerada. Só então me acordei. A televisão ainda estava ligada, entretanto, fora do ar.
Passei, como já era de costume, o resto da madrugada em claro. Pela manhã segui, novamente como um zumbi para a redação, disposto a mostrar serviço, mesmo enfatigado pelo sono atrasado, a fim de recuperar a minha imagem perante os superiores do jornal. Logo que cheguei foi me entregue uma pauta para que eu desenvolvesse. O chefe da redação informou em tom eloqüente que era a minha ultima chance. A pauta me chocou o bastante motivando a minha renúncia do emprego. _ Anciã morre espancada na avenida principal. _ Os nomes foram omitidos.

Tiago Eloy Zaidan

2 Comments:

Blogger Tainá Lima said...

muito bom.
espero que um dia esta sociedade hipócrita e covarde possa vir a ser dissipada pelo outro lado que a forma,um lado pequeno e pouco notado,constituído por nós,( seres conscientes da total mesquinharia e dissimulação que infelismente é a sociedade em que vivemos)

4:32 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Loló,
você é um grande escritor.. poeta, amigo..
São poucos os que enxergam na sociedade o que ninguém quer enxergar. São poucos os que notam a velhinha, menos ainda são os que a estendem a mão. Muitos são os que estão dispostos a dar mais um chute.

Beijinhos,

Priscilla

12:20 da manhã  

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