sábado, outubro 15, 2005

O CIENTISTA BÊBADO E O RINOCERONTE

UM CIENTISTA bêbado decidiu viajam para o espaço sideral. Quando lá chegou, pensou está em sua terra natal. Balbuciou qualquer coisa, mas tudo que conseguiu pronunciar foi “olá” e caiu desfigurado. As palavras eram monossilábicas e o pensamento alado. Quando acordou, creio que umas duas horas depois, o bêbado passou a desbravar aquele lugar. Uma perna lá e outra cá, andou uns vinte metros em direção ao nariz e caiu em seguida, desfigurado.

Aquele lugar era deserto. Sinistro. Como uma paisagem de cemitério ao cair da noite. Naquele ambiente, tudo era muito triste, sombrio e deprimente. Se existia vida naquele ambiente, o narrador não sabe dizer. O certo é que aquele mundo não parecia mundo. Tudo ali não fazia sentido algum. A única coisa que o narrador percebeu é que existia uma grande nave, parada no ar e dentro dela um grande computador, onde um ser não identificado, com uma inteligência sobre-humana, comandava o universo através de um botão gigante e de um teclado, onde digitava palavras de ordem. Se aquilo era ilusão, sonho ou realidade, também o narrador não sabe dizer. Sabe-se que dentro daquela nave existia uma máquina que comandava o cérebro dos viventes.

Naquele universo metafísico e psicológico, real ou imaginário, tudo era muito novo. O certo era o errado e alto ficava em baixo. O magro era gordo e o rico era pobre. Tudo ali parecia muito original. Um novo mundo, um novo planeta! E naquela realidade existia um bêbado que pensava ser gente.

Tudo o que o bêbado dizia não fazia sentido algum. Alias, nunca o que os bêbados, assassinos, racistas, terroristas, políticos e fanáticos dizem faz sentido. As frases que o bêbado pronunciava eram desconexas, sem referencia alguma à realidade.

Quando o bêbado tentou pronunciar uma frase mais real, o aparelho fonador emitiu um som, como que de um animal. Depois de muito esforço, conseguiu pronunciar a palavra “deslumbrante”. Quanto mais o bêbado lutava para por em ordem os seus pensamentos, mais ele se perdia em suas recordações.

De baixo de uma grande árvore, de uma mangueira centenária, passou a identificar aquele lugar como sendo o de sua infância pobre em família. Ali, chorou copiosamente. O remoço foi inevitável. Lembrou-se como fora mal para com os irmãos menores, para o meio ambiente e para os animais. A máquina, aos poucos, fora lhe transformando num outro homem, sem sentimento, egoísta e perverso.

Depois de identificar algumas paisagens daquele ambiente, o bêbado passou a procurar algum registro da presença humana naquele ambiente. Percorreu aquele mundo pensando não ser ele o primeiro a pisar no espaço sideral. Meio zonzo por não reconhecer nada do que o circundava, começou a desesperar-se.

Se o ambiente ali era indescritível, por não fazer referencia alguma à realidade vivente, seria difícil encontrar alguém com aspecto mais miserável naquele universo do que o do bêbado.

Era forte, de estatura mediana. Parecia ter de trinta e cinco a quarenta anos. Na cabeça, usava um boné com aba de couro. A camisa, presa ao corpo, de tecido grosseiro, trazia a imagem e os dizeres de um político da região. Trajava calças esfarrapadas e sapatos sem meias. Carregava, numa das mãos, uma garrafa de uísque e na outra uma medalha de seu santo protetor. O suor que escorria pelo peito cabeludo, tornava sua aparência ainda pior.

Quando tentou, pela terceira vez, manter comunicação com o mundo externo, tudo o que conseguiu perceber foi os seus próprios movimentos. Num gesto de coragem e bravura, gritou por socorro e tudo o que ouviu foi o seu próprio desespero; como se alguém gritasse dentro de uma caixa de ressonância magnética.

Aos poucos tomou consciência que estava só entre milhões de seres iguais a ele, a única diferença era que ele queria ser o dono da situação, dar um sentido para tudo aquilo, quando percebe que não consegue fazer o que a razão lhe diz, torna-se amigo das plantas, dos animais, enfim, do universo.

Numa constante indagação socrática do conhece-te a ti mesmo, o bêbado começou a interroga-se: quem sou eu? O que é o universo? O que é a realidade? Existe um sentido para tudo isso? Será que estou sozinho no mundo? Existe vida após a morte?

Questiona o bêbado. Quer entender o bêbado. Faz mistério o bêbado. Canta o bêbado. Dança o bêbado. Recita salmos o bêbado. Crê o bêbado que aquele mundo não é real. Quando olha para o mar, o bêbado vê nas margens, além de folhas secas, mariscos para alimentar o seu corpo frágil e indescritível. Depois de muita força intelectual, percebe as marcas da batalha entre a civilização e a barbárie. Recorda que fora ali a batalha entre o Bem e o Mal. E conclui dizendo: - “O bem, deveria vencer sempre!”.

O Bêbado observa personalidades históricas como Herodes, Lutero, Hitler, Sartre, Nietzsche, Getúlio Vargas e Pablo Picasso. Eles acenam com as mãos para o bêbado, num baile sincronizado e desesperador. Pedem perdão e misericórdia ao bêbado. O bêbado ri daquelas pobres almas e segue explorando aquele mundo, aquele universo psicológico, virtual e irreal.

O bêbado vê corpos destroçados e almas penadas. Em vão, tudo se move. Os pássaros voam sem direção. Em curvas linhas e retas o bêbado também segue explorando aquela realidade virtual. Quando passa por um cavalo galopando, tenta apear sela e cai em seguida. – “Isso aqui, não faz sentido algum!”, reclama o bêbado.

Numa sinfonia sinistra e macabra aos olhos dos humanos, o bêbado ri, canta e brinca com figuras de outro mundo. - “Por que me busca, se sou apenas um homem?”, pergunta o bêbado ao rinoceronte. – “Tu não és um homem. Tu és apenas um cientista!”, responde o rinoceronte com voz humana. – “Como assim, um rinoceronte?”, quer entender o bêbado. – “Observe as plantas”, respondeu o rinoceronte. Elas seguem as estações do ano. Algumas têm frutos, outras apenas galhos secos. Assim deve ser o ser humano. E você deve seguir o seu próprio destino”. – “E qual é o meu destino?”, perguntou o bêbado. – “Desvendar os enigmas da realidade; se vale a pena ou não viver num mundo cheio de egoísmo, violência e descrença”. – “Creio que não, senhor rinoceronte! É por isso que vivo sobre os efeitos da bebedeira. A realidade é dura de mais para os simples mortais, como eu. Somente os fortes sobrevivem. Eu, como sou frágil, prefiro viver numa realidade virtual. Aqui tudo é maravilhoso. Não sinto dor, fome e nem existe egoísmo. Entre os meus companheiros praticamos o comunismo, tudo é de todos. A mais valia, aqui não existe. Veja só: eu não sei como vir parar aqui, só consigo lembrar que saia de casa para o trabalho. Ia a pé, porque não tinha dinheiro para o transporte, quando um amigo meu me chamou e começamos a beber. Eu estava sem um tostão no bolso. E agora acordo e estou aqui conversando com você, creio que estou ficando doido”, concluiu o bêbado. – “Você estar enganado, respondeu o rinoceronte. Ninguém é livre. Veja só aquela máquina. Até ela é dominada por alguém. Ninguém é livre para fazer o que quer. Somos livres para fazer somente o que não queremos”.

Os ditames do mundo ébrios fizeram daquele pobre homem um cientista de si mesmo. Chorando como uma criança indefesa, chamava pela sua mãe e não era atendido. Falava de coisas desconexas para os racionais, mais era aplaudido pelos irracionais. Para os seres que haviam se depreendido da nave, tudo o que o bêbado falava fazia sentido. Se ele rezasse, logo se tornaria deus. Se ele cantasse, logo se tornaria pope. Se ele dormisse, cedo sonharia com a amada. Se ele fosse político, logo se tornaria presidente. Se ele dançasse, seria confundido com Michael Jackson. Mais, se ele ensinasse tudo o que sabe sobre o mundo das ciências, logo seria taxado de professor, louco ou filósofo.

A ameaça pedagógica foi forte. Todos os seres que o escutavam, gritaram em uma só voz: - “Nos ensina, mestre dos mestres. Comande nossas vidas. Queremos que seja o guisa da nave-mãe. Queremos ser filósofos”. E ele se livrou daqueles seres com uma frase de Emanuel Kant (1724-1804): “Não se ensina filosofia, aprende-se a filosofar”, disse em voz alta.

Quando cessou o eco de sua voz, o bêbado pensou estar só, mas não estava. Os seres, das mais estranhas espécies, entre eles políticos, religiosos, cientistas, terroristas, ateus, machistas e preconceituosos, o seguiam. Conforme a sua caminhada, rumo a lugar nenhum, naquele imenso espaço sideral, o bêbado se sente um dos piores seres da terra. Não tinha dinheiro para o pão das crianças. Não tinha educação. Não tinha sorte. Não tinha vida. O bêbado cantou uma canção, que era mais ou menos assim: – “não chores meu filho, não chores que a vida vai melhorar. Tome o que é seu e siga a sua missão. Cuidado com a corrupção, se não você acaba que nem eu, sem o dinheiro para o arroz e o feijão”. O bêbado cantou, cantou até ficar só. – “Ninguém agüenta mais essa música, disse o rato com voz humana, que representava a classe dos políticos.

O bêbado andou por caminhos desconhecidos. Percorreu estradas que nenhum outro ser humano percorreu. Descobriu que o planeta que ora explorava não era muito diferente do seu. Afinal, qual era mesmo o seu planeta? Percebeu que ali nada fazia sentido. Tinha gente incrédula, violenta, racista, preconceituosa e exploradora da miséria humana.

Aberta a ferida da consciência, o bêbado decidiu voltar e logo percebeu que estava no quintal de sua casa. Deixou aquele lugar imediatamente que voltou a si. – “O mundo do bem é maravilhoso. Mas este mundo ninguém constrói sozinho. Precisamos nos ajudar mutuamente na construção do mundo da luz”, pensou.

O bêbado ainda andou por longas ruas e cidades perdidas em busca de um sentido para tudo aquilo. Procurou uma ordem e só encontrou o caos. Perguntou aos que passavam onde estava o sentido da vida, mas todos olhavam atentos para uma criança que chorava copiosamente e ninguém lhe respondeu onde encontrar a verdade das coisas.

- “No mundo de hoje, meu filho, o certo pode ser o errado, tudo depende dos interesses”, disse uma senhora idosa, apoiando-se numa bengala. – “Quem é a senhora?”, perguntou o bêbado. – “Eu sou aquilo que você quer que eu seja”, respondeu a senhora, agora com outro aspecto, mais jovem, aparentando estar na flor da juventude. – “Então, tu serás a minha guia. Eu preciso sair desse mundo”. – Eu não posso ser aquilo que tu não queiras”, respondeu. – “Sim, eu quero. Preciso urgentemente me encontrar”. – Faça tudo o que manda o seu coração. Se ele diz que é para você ser bom, então seja! Aconselhou aquela jovem.

O bêbado continuou andando pelo mundo dos alcoólatras, drogados, dos incrédulos, dos políticos, dos radicais, dos machistas, até que encontrou o Amor. Passou muito tempo, horas, dias, meses anos, mas o bêbado voltou a realidade. O pior de tudo isso é que a realidade do universo ébrio, continua alegre, chamativo e colorido, enquanto que o mundo real, no qual habitam os seres humanos, continua deprimente, egoísta e triste.

Até quando o bêbado vai agüentar o tédio da vida real? Será que vale a pena viver sobre os horrores da realidade ou sobre as maravilhas da vida virtual? O bêbado encontra-se distante dessa discursão, não alheio. No momento, encontra-se divulgando a filosofia do equilíbrio. Prega ele: - “Deixaremos o mundo tão tolo e patético, assim como o encontramos, se não falarmos do que sentimos com amor. A paciência, o respeito, e a fé, são virtudes imprescindíveis para a paz”. Ao ensinar essa nova filosofia, o bêbado-cientista é criticado pelo mundo capitalista. Os meios de comunicação divulgam calúnias ao seu passado. Tem recaído o cientista bêbado. Passa a andar entre os covardes, mentirosos, ladrões e assassinos. Quando vem em seu auxilio Isaac Newton, dizendo: “O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano”. Com isso, o bêbado se reergue da tumba. Mira em direção aos seus objetivos e reencontra o horizonte perdido. Encontra força e paz, numa perfeita sincronia entre o passado, presente e futuro. Aos poucos o ilusório se torna real, o longe fica perto e o escuro claro.

Enquanto isso, no mundo dos bêbados e dos viciados, dos incrédulos e dos religiosos, dos políticos e covardes, dos terroristas e machistas, o rinoceronte despetelava uma flor de pampolha e os outros seres estranhos ao mundo dos humanos, brincam com as crianças e professores, com as donas de casa e com os filósofos, de Bem me Quer e Mal me Quer.

Luís Carlos Lemos da Silva

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Simplesmente, IMPRESSIONANTE. Parabéns por sua sensibilidade. Hermes Maclaud - Maceió-AL.

2:45 da manhã  

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